CIRCULADÔ DE FULÔ (GALÁXIAS)
circuladô de fulô ao deus ao demodará que deus te guie
porque eu não posso guiá eviva quem já me deu circuladô de
fulô e ainda quem falta me dá
soando como um shamisen e feito apenas com um arame
tenso um cabo e uma lata velha num fim de festafeira no
pino do sol a pino mas para outros não existia aquela música
não podia porque não podia popular aquela música se não
canta não é popular se não afina não tintina não tarantina e
no entanto puxada na tripa da miséria na tripa tensa da mais
megera miséria física e doendo doendo como um prego
na palma da mão um ferrugem prego cego na
palma espalma da mão coração exposto como um nervo
tenso retenso um renegro prego cego durando na palma
polpa da mão ao sol
…
[circuladô de fulô ao deus ao demodará que deus te guie
porque eu não posso guiá eviva quem já me deu
circuladô de fulô e ainda quem falta me dá]
…
o povo é o inventalínguas na malícia da maestria no matreiro
da maravilha no visgo do improviso tenteando a travessia
azeitava o eixo do sol
…
[circuladô de fulô ao deus ao demodará que deus te guie
porque eu não posso guiá eviva quem já me deu
circuladô de fulô e ainda quem falta me dá]
…
e não peça que eu te guie não peça despeça que eu te guie
desguie que eu te peça promessa que eu te fie me deixe
me esqueça me largue me desamargue que no fim eu acerto que
no fim eu reverto que no fim eu conserto e para o fim me
reservo e se verá que estou certo e se verá que tem jeito e se
verá que está feito que pelo torto fiz direito que quem faz
cesto faz cento se não guio não lamento pois o mestre que
me ensinou já não dá ensinamento
…
[circuladô de fulô ao deus ao demodará que deus te guie
porque eu não posso guiá eviva quem já me deu]
Haroldo de Campos
ANÁLISE
Em 1959, Haroldo de Campos viajou pela Europa, deixando o Brasil pela primeira
vez, em uma viagem de formação que incluiu entre outros eventos e uma visita a Ezra Pound
em Rapallo. Regressando ao Brasil pelo nordeste, visitou outras cidades nordestinas antes de
retornar a São Paulo. Posteriormente, em 1965 a memória desta viagem pelo nordeste Brasil
foi criada pelo poeta, no fragmento “circuladô de fulo”, que compõe Galáxias.
Este fragmento desloca-se do espaço geográfico do nordeste brasileiro e penetra no
espaço da linguagem popular. Na passagem por João Pessoa, Paraíba, um som rudimentar
chama a atenção do poeta, fazendo-o estabelecer relações com o som do shamizem,
instrumento de cordas japonês semelhante ao banjo. Um poema que se baseia em um registro
verídico, descreve como um cantador popular, um pedinte de feira, na condição mais difícil
de vida, consegue tocar um instrumento rudimentar capaz de produzir um som tão inovador,
um instrumento feito apenas com um arame tenso, um cabo e uma lata velha. A distância
geográfica e cultural que separa os dois instrumentos é superada pelo imaginário semiótico do
poeta. Associando um fenômeno popular regional de uma feira em uma cidade do nordeste
brasileiro com a sonoridade oriental japonesa, o poeta enfatiza a neutralidade e anulação de
fronteiras geográficas e também de outras fronteiras, de ordem cultural.
Dialogando com o talento artístico artesanal do cantador popular, o poeta constrói
elementos de ritmos e ritmas que mobilizam a leitura-escuta do leitor para a sonoridade
onomatopaica dos repentistas nordestinos.
“Circulado (cercado) de flor” ou “circulador (no sentido de uma força que faz circular) de
flor”. Na segunda leitura, Caetano Veloso compôs sua bela canção inspirada neste poema de
Haroldo de Campos.
circuladô de fulô ao deus ao demodará que deus te guie
porque eu não posso guiá eviva quem já me deu circuladô de
fulô e ainda quem falta me dá
soando como um shamisen e feito apenas com um arame
tenso um cabo e uma lata velha num fim de festafeira no
pino do sol a pino mas para outros não existia aquela música
não podia porque não podia popular aquela música se não
canta não é popular se não afina não tintina não tarantina e
no entanto puxada na tripa da miséria na tripa tensa da mais
megera miséria física e doendo doendo como um prego
na palma da mão um ferrugem prego cego na
palma espalma da mão coração exposto como um nervo
tenso retenso um renegro prego cego durando na palma
polpa da mão ao sol
…
[circuladô de fulô ao deus ao demodará que deus te guie
porque eu não posso guiá eviva quem já me deu
circuladô de fulô e ainda quem falta me dá]
…
o povo é o inventalínguas na malícia da maestria no matreiro
da maravilha no visgo do improviso tenteando a travessia
azeitava o eixo do sol
…
[circuladô de fulô ao deus ao demodará que deus te guie
porque eu não posso guiá eviva quem já me deu
circuladô de fulô e ainda quem falta me dá]
…
e não peça que eu te guie não peça despeça que eu te guie
desguie que eu te peça promessa que eu te fie me deixe
me esqueça me largue me desamargue que no fim eu acerto que
no fim eu reverto que no fim eu conserto e para o fim me
reservo e se verá que estou certo e se verá que tem jeito e se
verá que está feito que pelo torto fiz direito que quem faz
cesto faz cento se não guio não lamento pois o mestre que
me ensinou já não dá ensinamento
…
[circuladô de fulô ao deus ao demodará que deus te guie
porque eu não posso guiá eviva quem já me deu]
Haroldo de Campos
ANÁLISE
Em 1959, Haroldo de Campos viajou pela Europa, deixando o Brasil pela primeira
vez, em uma viagem de formação que incluiu entre outros eventos e uma visita a Ezra Pound
em Rapallo. Regressando ao Brasil pelo nordeste, visitou outras cidades nordestinas antes de
retornar a São Paulo. Posteriormente, em 1965 a memória desta viagem pelo nordeste Brasil
foi criada pelo poeta, no fragmento “circuladô de fulo”, que compõe Galáxias.
Este fragmento desloca-se do espaço geográfico do nordeste brasileiro e penetra no
espaço da linguagem popular. Na passagem por João Pessoa, Paraíba, um som rudimentar
chama a atenção do poeta, fazendo-o estabelecer relações com o som do shamizem,
instrumento de cordas japonês semelhante ao banjo. Um poema que se baseia em um registro
verídico, descreve como um cantador popular, um pedinte de feira, na condição mais difícil
de vida, consegue tocar um instrumento rudimentar capaz de produzir um som tão inovador,
um instrumento feito apenas com um arame tenso, um cabo e uma lata velha. A distância
geográfica e cultural que separa os dois instrumentos é superada pelo imaginário semiótico do
poeta. Associando um fenômeno popular regional de uma feira em uma cidade do nordeste
brasileiro com a sonoridade oriental japonesa, o poeta enfatiza a neutralidade e anulação de
fronteiras geográficas e também de outras fronteiras, de ordem cultural.
Dialogando com o talento artístico artesanal do cantador popular, o poeta constrói
elementos de ritmos e ritmas que mobilizam a leitura-escuta do leitor para a sonoridade
onomatopaica dos repentistas nordestinos.
“Circulado (cercado) de flor” ou “circulador (no sentido de uma força que faz circular) de
flor”. Na segunda leitura, Caetano Veloso compôs sua bela canção inspirada neste poema de
Haroldo de Campos.
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