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POEMA: E começo aqui...(galáxias) e análise

E COMEÇO AQUI... (GALÁXIAS)

e começo aqui e meço aqui este começo e recomeço e remeço e arremesso
e aqui me meço quando se vive sob a espécie da viagem o que importa
não é a viagem mas o começo da por isso meço por isso começo escrever
mil páginas escrever milumapáginas para acabar com a escritura para
começar com a escritura para acabarcomeçar com a escritura por isso
recomeço por isso arremeço por isso teço escrever sobre escrever é
o futuro do escrever sobrescrevo sobrescravo em milumanoites milumapáginas
ou uma página em uma noite que é o mesmo noites e páginas
mesmam ensimesmam onde o fim é o comêço onde escrever sobre o escrever
é não escrever sobre não escrever e por isso começo descomeço pelo
descomêço desconheço e me teço um livro onde tudo seja fortuito e
forçoso um livro onde tudo seja não esteja seja um umbigodomundolivro
um umbigodolivromundo um livro de viagem onde a viagem seja o livro
o ser do livro é a viagem por isso começo pois a viagem é o começo
e volto e revolto pois na volta recomeço reconheço remeço um livro
é o conteúdo do livro e cada página de um livro é o conteúdo do livro
e cada linha de uma página e cada palavra de uma linha é o conteúdo
da palavra da linha da página do livro um livro ensaia o livro
todo livro é um livro de ensaio de ensaios do livro por isso o fimcomêço
começa e fina recomeça e refina se afina o fim no funil do
começo afunila o começo no fuzil do fim no fim do fim recomeça o
recomeço refina o refino do fim e onde fina começa e se apressa e
regressa e retece há milumaestórias na mínima unha de estória por
isso não conto por isso não canto por isso a nãoestória me desconta
ou me descanta o avesso da estória que pode ser escória que pode
ser cárie que pode ser estória tudo depende da hora tudo depende
da glória tudo depende de embora e nada e néris e reles e nemnada
de nada e nures de néris de reles de ralo de raro e nacos de necas
e nanjas de nullus e nures de nenhures e nesgas de nulla res e
nenhumzinho de nemnada nunca pode ser tudo pode ser todo pode ser total
tudossomado todo somassuma de tudo suma somatória do assomo do assombro
e aqui me meço e começo e me projeto eco do começo eco do eco de um
comêço em eco no soco de um comêço em eco no oco eco de um soco
no osso e aqui ou além ou aquém ou láacolá ou em toda parte ou em
nenhuma parte ou mais além ou menos aquém ou mais adiante ou menos atrás
ou avante ou paravante ou à ré ou a raso ou a rés começo re começo
rés começo raso começo que a unha-de- fome da estória não me come
não me consome não me doma não me redoma pois no osso do começo só
conheço o osso o osso buco do começo a bossa do começo onde é viagem
onde a viagem é maravilha de torna viagem é tornassol viagem de maravilha
onde a migalha a maravalha a apara é maravilha é vanilla é vigília
é cintila de centelha é favila de fábula é lumínula de nada e descanto
a fábula e desconto as fadas e conto as favas pois começo a fala.

Haroldo de Campos

ANÁLISE

A coesão do texto poético está na partícula “e”, como item anafórico, repetitivo,
responsável pela ligação entre os elementos semânticos. Nesse fragmento inicial, a antítese “a
viagem como livro ou livro como viagem” constitui um dos principais elementos do texto.
Um poema estruturado para enfatizar a dificuldade do começo no ato de escrever,
quando o poeta manifesta essa dificuldade ao iniciar o texto seguidamente, por sete vezes,
demonstrando o constante e contínuo começo e recomeço do ato de escrever.
Este poema é o fragmento inicial, escrito em 1963, do livro Galáxias, e funciona como
elemento de sustentação, junto com o último fragmento do livro, de todos os demais
fragmentos que fazem parte do livro.
Um texto conectado com a linguagem musical, a composição musical erudita ou
popular, com a sonoridade, um texto que dialoga com a música barroca por meio de efeitos
vocais, expressões onomatopaicas, aliterações e um efeito perceptível na sonoridade dos
vocábulos. Uma intertextualidade verbo-musical. Um livro para ser lido em voz alta, com
ritmo, onde as palavras ganham força e emocionam como uma espécie de mantra. Texto para
ser lido em voz alta, assim como a prosa poética não linear de Guimarães Rosa.
O poema, assim como o livro todo, apresenta uma experiência metalinguística, um
“escrever sobre o escrever”, propondo uma leitura ensaística e poética, prosa e poesia. Letras
em itálico reforçando as ondas de ir e vir, fruição do texto poético, uma leitura fluida.
Reprocessando e inventando novas palavras e criando novas possibilidades de leitura
semântica. “Umbigodomundolivro”, “umbigodolivromundo”, “sobrescrevo”, “sobrescravo”,
“milumanoites”, “milumapáginas”.
Sobrescrevo (sobre + escrever): escrever sobre o escrever, uma das estruturas
semânticas da obra, enquanto que sobrescravo (sobre + escravo), sugere a ideia do poeta
como escravo do escrever.
O poema, assim como todo livro Galáxias, apresenta também uma enorme quantidade
de citações, procedimento de caráter barroco, onde a voz do poeta não é mais importante do
que as vozes invocadas no dizer poético. Assim, o poeta deixa clara a ideia da
intertextualidade, de que um texto se faz a partir de outros textos, mesmo por meio de citações
implícitas. Haroldo de Campos propõe um encontro literário entre a tradição e a modernidade.
Em “nemnada”, por exemplo, verificamos uma citação do poeta a “nonada”, palavra criada
pelo Guimarães Rosa em Grande Sertão: Veredas; ou ainda “nenhumzinho”, neologismo
criado também em referência a prosa de Guimarães Rosa.
Característica sempre presente em projetos barroco ou neobarroco, a antítese é uma
figura de linguagem bastante utilizada em toda obra Galáxias. Com a antítese o poeta extrai
sentidos novos do choque entre fim e começo, tudo e nada, aqui e além, mais além e menos
aquém, ralo e raro, toda parte e nenhuma parte, conto e desconto, fortuito e forçoso, todo e
parte. Uma harmonia entre palavras antagônicas, criando novos sentidos a partir das
diferenças que há entre elas.
Nas expressões metafóricas desse poema, o autor prefere vocábulos com significações
concretas: livro, unha, tornassol, umbigo. O poeta concebe neste começo do livro uma
linguagem que explora o visível e o audível, eliminando as fronteiras entre regional e
universal, presente e passado, modernidade e tradição, literatura e demais artes, erudito e
popular.

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