SASAMEGOTO (GALÁXIAS)
sasamegoto a fala daquela dona coisa de fala mascada ou molhada
marulho ou murmulho cicio ou sussúrrio balbúcie ou borbulha ou mussitar
ou musselina e sasamegoto sachet mascado na língua whispering aquela
dona companheira de carruagem diria buson ou bashô buson enquanto a
primavera haru same ya chove palavras maceradas como goma de mascar
resina e açúcar nas papilas coisa de fala sacarinando dançarinando
nos lábios aflorados nos entrelábios nos entreflorlábios farfalhando
fala farinando fala sim mas agora bashô não buson bashô seishi sob
a chuva sonho de sensitivas o tempo todo pensando nessa imagem todo
como as dormideiras no seu sono de chuva samidare um outro mês o quinto
e contra a chuva a chuveirante chuva de maio hikari teu escudo de luz
templo de ouro onde aquela dona onde aquela fala hikari dô a luz curva
como lâmina de ouro o ouro curvo como lâmina de luz palio paládio
contra as chuvas de maio e o trem correndo o trem disparado num tubo
de neve êmbolos embalados num túnel luva de neve em rolantes reversas
pistas de neve o tiro do trem na neve o murro do trem na neve como um
furo de silvos de sibilos de apitos que onde o trem parar será aquela
dona que onde o trem calhar será aquela dona que onde a neve neva onde
a noite noita onde o fim fina será aquela dona seu suave titil tatibitate
titubeando seu rolarrulho arrôlo seu tíbio tímido turturinando trêmolo
de murmúrio de marulho de murmulho de gorjeio de trauteios de psius
de psilos de bilros de trilos aquela fala de fios daquela dona nem que
a neve neve nem que a noite noite nem que o fim fine será lá onde o
trem parar o disparado tendão do trem cortando neve do trem furando neve
furfurando neve que ela vai estar por estar primavinda primavera que
a neve não gela primícia primavera no seu halo de espera a mera a vera
a víride visão verna da primavera aquela fala que falha e farfalha que
vela e revela que cala e descala aquela goma de palavras aquela aromada
domada mordida mascada moída pasta de palavras como alguém mordendo a
língua como alguém travando a língua como alguém dosando e adoçando
tremendo e contendo e prevendo e contando e sofrendo e sofreando a
língua a mordida língua doendo dentro de um beijo de palavras um sopro
um bafo uma aura um aroma de palavras apenas uma dona contra o biombo
de papel dum leque imaginário sussurrando coisas monogatari estórias de
papel num leque o oval azul subindo como uma lua tsuki aoi tsuki mas
ahoj quer dizer também olá ou alô adeus numa outra parte onde a neve neva
e o moldau congela onde a neve calva e o moldava alva goldene stadt
cristas cimos cimalhas de ouro contra a neve flüsternd a voz daquela
dona as palavras virando névoa de gaze aflando ruflando como um corpo
de névoa primavera no inverno primavinda no inverno quando o trem estala
como um elástico na neve no dedo de luva branca da neve como o livro
se escreve nesse pasmado branco disparo de trem cortando rente cortando
em frente sempremente entressemprementenfrente a dona sasame daquela fala.
Haroldo de Campos
ANÁLISE
Neste poema o autor faz referências aos haicais dos poetas japoneses Bashô e Buson.
Em uma das passagens do texto, chegamos a “ouvir” o balbucio de uma mulher, na riqueza de
detalhes com que o poeta descreve a cena:
“a fala daquela dona coisa de fala mascada ou molhada marulho ou murmulho cicio ou
sussúrrio balbúcie ou borbulha ou mussitar”.
O autor faz uso de vários vocábulos: mascada, molhada, marulho (o som do mar),
cicio (rumor brando), borbulha e balbúcie (fala de alguém quando está bêbado). Designer da
linguagem, Haroldo de Campos cria neologismos, sobressaindo o minimalismo do som e a
multiplicidade da linguagem, criando à semelhança de James Joyce e Guimarães Rosa,
palavras como murmulho (murmúrio + marulho) e sussúrrio (sussurro + murmúrio).
Além dos neologismos, a escolha dos vocábulos impressiona, como por exemplo a
palavra “mussitar”, que significa mexer os lábios sem dizer nada. Nesse aspecto, tanto
Haroldo de Campos, Joyce e Rosa, ambos dedicam uma especial atenção na sonoridade dos
vocábulos.
Nas referências às culturas chinesa e japonesa na poesia de Haroldo de Campos, o
poema sasamegoto é uma das mais importantes. Entrelaçado por diversos haicais
(“sasamegoto” é uma palavra japonesa que significa literalmente “coisa de palavras”), o texto
narra a fala de uma “dona” no Templo de Ouro visitado na cidade japonesa de Kioto,
encerrando-se nessas palavras:
“a voz daquela / dona as palavras virando névoa de gaze aflando ruflando como um corpo / de
névoa primavera no inverno primavinda no inverno quando o trem estala / como um elástico
na neve no dedo de luva branca da neve como o livro / se escreve nesse pasmado branco
disparo de trem cortando rente cortando / em frente sempremente entressemprementenfrente a
dona sasame daquela fala”.
Uma disseminação de palavras, constantes neologismos, permeada por referências
intertextuais, narrando dois acontecimentos simultâneos.
Neste poema sasamegoto, o autor de Galáxias apresenta relatos de duas viagens
realizadas por cidades muito distantes uma da outra: Kioto, no Japão, e Praga, na República
Tcheca. Kioto, e um cenário de primavera, de carruagem; em Praga, no inverno e de trem.
Diante de cenários opostos, atravessamos o Oriente e o Ocidente no fluxo da leitura,
desconhecendo fronteiras e incorporando diferenças, apreciando a paisagem japonesa com seu
‘templo dourado’, e Praga, a ‘cidade dourada’.
Esta viagem, embora ocorra em dois lugares diferentes e distantes, parece que tudo
acontece em um só espaço e ao mesmo tempo. Uma mulher transitando pelas duas localidades
será o motivo nesta viagem, uma figura feminina que parece ser real, em carne e osso.
Entretanto, não sabemos seu nome, os detalhes de seu rosto, dos seus cabelos, de seu corpo. O
poeta descreve os sons emitidos pela boca dessa mulher, à “fala daquela dona”, algo
“mascada ou molhada marulho ou murmulho cicio ou sussúrrio balbúcie ou borbulha”.
Importante destacar o valor que o poeta confere à linguagem oral, à linguagem visual,
audiovisual e verbal, ou seja, às linguagens verbais e não verbais.
Esses sons nada dizem literalmente, mas o que vêm a ser os significantes neológicos
“marulho” senão um barulho molhado como as águas do mar?
O lirismo e suavidade dos sons é prioridade neste poema desde o início, como na
sonora palavra “sasamegoto”, vocábulo tão onomatopaico quanto ‘sussurro’.
Na primavera japonesa e no inverno tcheco, de carruagem ou de trem, percorrendo as
duas paisagens como se fossem próximas uma da outra, o imaginário do poeta será sempre o
principal elemento desse livro-viagem.
sasamegoto a fala daquela dona coisa de fala mascada ou molhada
marulho ou murmulho cicio ou sussúrrio balbúcie ou borbulha ou mussitar
ou musselina e sasamegoto sachet mascado na língua whispering aquela
dona companheira de carruagem diria buson ou bashô buson enquanto a
primavera haru same ya chove palavras maceradas como goma de mascar
resina e açúcar nas papilas coisa de fala sacarinando dançarinando
nos lábios aflorados nos entrelábios nos entreflorlábios farfalhando
fala farinando fala sim mas agora bashô não buson bashô seishi sob
a chuva sonho de sensitivas o tempo todo pensando nessa imagem todo
como as dormideiras no seu sono de chuva samidare um outro mês o quinto
e contra a chuva a chuveirante chuva de maio hikari teu escudo de luz
templo de ouro onde aquela dona onde aquela fala hikari dô a luz curva
como lâmina de ouro o ouro curvo como lâmina de luz palio paládio
contra as chuvas de maio e o trem correndo o trem disparado num tubo
de neve êmbolos embalados num túnel luva de neve em rolantes reversas
pistas de neve o tiro do trem na neve o murro do trem na neve como um
furo de silvos de sibilos de apitos que onde o trem parar será aquela
dona que onde o trem calhar será aquela dona que onde a neve neva onde
a noite noita onde o fim fina será aquela dona seu suave titil tatibitate
titubeando seu rolarrulho arrôlo seu tíbio tímido turturinando trêmolo
de murmúrio de marulho de murmulho de gorjeio de trauteios de psius
de psilos de bilros de trilos aquela fala de fios daquela dona nem que
a neve neve nem que a noite noite nem que o fim fine será lá onde o
trem parar o disparado tendão do trem cortando neve do trem furando neve
furfurando neve que ela vai estar por estar primavinda primavera que
a neve não gela primícia primavera no seu halo de espera a mera a vera
a víride visão verna da primavera aquela fala que falha e farfalha que
vela e revela que cala e descala aquela goma de palavras aquela aromada
domada mordida mascada moída pasta de palavras como alguém mordendo a
língua como alguém travando a língua como alguém dosando e adoçando
tremendo e contendo e prevendo e contando e sofrendo e sofreando a
língua a mordida língua doendo dentro de um beijo de palavras um sopro
um bafo uma aura um aroma de palavras apenas uma dona contra o biombo
de papel dum leque imaginário sussurrando coisas monogatari estórias de
papel num leque o oval azul subindo como uma lua tsuki aoi tsuki mas
ahoj quer dizer também olá ou alô adeus numa outra parte onde a neve neva
e o moldau congela onde a neve calva e o moldava alva goldene stadt
cristas cimos cimalhas de ouro contra a neve flüsternd a voz daquela
dona as palavras virando névoa de gaze aflando ruflando como um corpo
de névoa primavera no inverno primavinda no inverno quando o trem estala
como um elástico na neve no dedo de luva branca da neve como o livro
se escreve nesse pasmado branco disparo de trem cortando rente cortando
em frente sempremente entressemprementenfrente a dona sasame daquela fala.
Haroldo de Campos
ANÁLISE
Neste poema o autor faz referências aos haicais dos poetas japoneses Bashô e Buson.
Em uma das passagens do texto, chegamos a “ouvir” o balbucio de uma mulher, na riqueza de
detalhes com que o poeta descreve a cena:
“a fala daquela dona coisa de fala mascada ou molhada marulho ou murmulho cicio ou
sussúrrio balbúcie ou borbulha ou mussitar”.
O autor faz uso de vários vocábulos: mascada, molhada, marulho (o som do mar),
cicio (rumor brando), borbulha e balbúcie (fala de alguém quando está bêbado). Designer da
linguagem, Haroldo de Campos cria neologismos, sobressaindo o minimalismo do som e a
multiplicidade da linguagem, criando à semelhança de James Joyce e Guimarães Rosa,
palavras como murmulho (murmúrio + marulho) e sussúrrio (sussurro + murmúrio).
Além dos neologismos, a escolha dos vocábulos impressiona, como por exemplo a
palavra “mussitar”, que significa mexer os lábios sem dizer nada. Nesse aspecto, tanto
Haroldo de Campos, Joyce e Rosa, ambos dedicam uma especial atenção na sonoridade dos
vocábulos.
Nas referências às culturas chinesa e japonesa na poesia de Haroldo de Campos, o
poema sasamegoto é uma das mais importantes. Entrelaçado por diversos haicais
(“sasamegoto” é uma palavra japonesa que significa literalmente “coisa de palavras”), o texto
narra a fala de uma “dona” no Templo de Ouro visitado na cidade japonesa de Kioto,
encerrando-se nessas palavras:
“a voz daquela / dona as palavras virando névoa de gaze aflando ruflando como um corpo / de
névoa primavera no inverno primavinda no inverno quando o trem estala / como um elástico
na neve no dedo de luva branca da neve como o livro / se escreve nesse pasmado branco
disparo de trem cortando rente cortando / em frente sempremente entressemprementenfrente a
dona sasame daquela fala”.
Uma disseminação de palavras, constantes neologismos, permeada por referências
intertextuais, narrando dois acontecimentos simultâneos.
Neste poema sasamegoto, o autor de Galáxias apresenta relatos de duas viagens
realizadas por cidades muito distantes uma da outra: Kioto, no Japão, e Praga, na República
Tcheca. Kioto, e um cenário de primavera, de carruagem; em Praga, no inverno e de trem.
Diante de cenários opostos, atravessamos o Oriente e o Ocidente no fluxo da leitura,
desconhecendo fronteiras e incorporando diferenças, apreciando a paisagem japonesa com seu
‘templo dourado’, e Praga, a ‘cidade dourada’.
Esta viagem, embora ocorra em dois lugares diferentes e distantes, parece que tudo
acontece em um só espaço e ao mesmo tempo. Uma mulher transitando pelas duas localidades
será o motivo nesta viagem, uma figura feminina que parece ser real, em carne e osso.
Entretanto, não sabemos seu nome, os detalhes de seu rosto, dos seus cabelos, de seu corpo. O
poeta descreve os sons emitidos pela boca dessa mulher, à “fala daquela dona”, algo
“mascada ou molhada marulho ou murmulho cicio ou sussúrrio balbúcie ou borbulha”.
Importante destacar o valor que o poeta confere à linguagem oral, à linguagem visual,
audiovisual e verbal, ou seja, às linguagens verbais e não verbais.
Esses sons nada dizem literalmente, mas o que vêm a ser os significantes neológicos
“marulho” senão um barulho molhado como as águas do mar?
O lirismo e suavidade dos sons é prioridade neste poema desde o início, como na
sonora palavra “sasamegoto”, vocábulo tão onomatopaico quanto ‘sussurro’.
Na primavera japonesa e no inverno tcheco, de carruagem ou de trem, percorrendo as
duas paisagens como se fossem próximas uma da outra, o imaginário do poeta será sempre o
principal elemento desse livro-viagem.
Comentários
Postar um comentário